LISTEN, de ANA ROCHA

 




LISTEN ou OUVE-ME


“Ouve-me” ou “Listen”, conforme o filme se veja em Portugal ou em Inglaterra, é a obra de estreia de Ana Rocha que se estreou no Festival de Veneza, onde se portou verdadeiramente bem, arrebatando vários prémios, os oficiais Leão do Futuro e o Prémio Especial do Júri, na secção "Horizontes", e ainda os galardões paralelos Bisato d’Oro, Sorriso Diverso Veneza, Casa Wabi e HFPA.

Ana Rita Rocha de Sousa, de seu nome completo, nasceu em Lisboa, a 28 de Outubro de 1978. Estreia-se como actriz, muito nova, numa pequena participação no filme de João Botelho, “No Dia dos Meus Anos” (1991). Em televisão (RTP, TVI e SIC) apareceu em diversos trabalhos, como “Riscos”, “Jornalistas”, “Médico de Família”, “Alves dos Reis”, “A Raia dos Medos”, “A Senhora das Águas”, “Um Estranho em Casa”, “Sonhos Traídos”, “Morangos com Açúcar”, “Maiores de 20”, “Inspector Max”, “Mistura Fina” ou “Jura”. No teatro, entre outros espectáculos, integrou o elenco de “Sonho de uma Noite de Verão”, no Teatro Nacional D. Maria II, numa encenação de João Ricardo.





Entretanto, em simultâneo, Ana Rocha licenciou-se em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. A faceta de actriz nunca deixou de lhe interessar, mas aspirava a algo diferente. Emigrou para Inglaterra, para estudar cinema, na reputada London Film School, onde completou um mestrado em realização com orientação de Mike Leigh. Foi experimentando o olhar da câmara nalgumas curtas-metragens e documentários, entre os quais “Aqui e agora”, sobre Adriano Correia de Oliveira, “Quem nos Larga…”, “Laundriness”, “Minha Alma and You” ou “No Mar”. Foi ainda dedicando o seu tempo a concertos e vídeoclips de alguns cantores, como Sérgio Godinho, Maria João, Raquel Tavares, Xaile ou Aldina Duarte. Para quem nasceu em 1978, não se pode dizer que tenha andado a ver passar o tempo. A sua passagem por Londres foi decisiva na consolidação de uma carreira. Curiosamente, Portugal não tem sido muito dado a escolher a London Film School como escola de formação. Mas, quando o faz, veja-se o caso de Fernando Lopes, dá-se bem. Existe uma tradição de cinema social inglês, que vem desde os anos 30, com a escola documentarista¸ onde avultaram nomes como John Grierson, Basil Wright, Humphrey Jennings, Alberto Cavalcanti, Arthur Elton, Edgar Anstey, Stuart Legg, Paul Rotha e Harry Watt, entre outros. Outro momento alto do cinema realista social em Inglaterra acontece nos anos 60 do século passado, com o Free Cinema (muito ligado aos “Angry Young Men”), que revela autores como Lindsay Anderson, Karel Reisz, Tony Richardson ou Lorenza Mazzetti. Muito mais tarde, surge uma nova geração de cineastas que se interessa pelo retrato social de Inglaterra, com realizadores como Mike Leigh, Ken Loach, Shane Meadows, entre vários outros. Sintomaticamente para alguma crítica portuguesa, este tipo de cinema nunca mereceu os mesmos elogios que a Nouvelle Vague, por exemplo, sempre granjeou (justificadamente estes elogios, como seriam igualmente os dedicados ao cinema inglês).



Todo este preâmbulo para situar “Listen”, que se coloca abertamente na linha desta tradição de um certo realismo social britânico, o que fica ainda mais visível ao se saber que Mike Leigh foi um (bom) professor de Ana Rocha, que aproveitou bem as aulas, mantendo algo de profundamente essencial em matéria de professores e alunos: a independência e autonomia dos alunos perante os professores. A voz de Ana Rocha manteve-se intocável.






“Ouve-me” fala de uma família portuguesa a viver actualmente em Londres. Um casal e três filhos, a mãe a trabalhar a dias, o pai, agora desempregado, mas anteriormente empregado numa marcenaria, que lhe ficou a dever dinheiro. Os filhos vão desde um bebé de cerca de um ano, uma miúda de seis/sete anos, surda, e um jovem de doze anos. Como a miúda aparece com umas nódoas nas costas que sugerem ter sido agredida, a segurança social toma conta do assunto, retira as crianças aos pais, que não aceitam a separação e fazem tudo para reaver os filhos e regressarem com eles a Portugal. Esta base dramática permite uma descrição de ambientes sociais muito bem dada, mas permitiria igualmente um choradinho sem fim, o que Ana Rocha consegue evitar com mestria e muita segurança estilística. As imagens ganham sempre um distanciamento óbvio, um empenhamento humano discreto, uma compreensão das razões das diversas partes (nunca se infernizam as instituições inglesas que fazem o que têm a fazer o melhor possível). A realizadora afasta a emoção fácil, quer através de uma óptima direcção de actores, quer ainda pela introdução de imagens aparentemente desligadas da acção, pormenores de um cenário, de uma paisagem, etc. A própria fotografia, algo granulada, por vezes difusa, ajuda a este efeito. Depois o rigor na descrição dos cenários, o interior da casa do casal português, as salas das instituições, os exteriores, tudo é meticulosamente recuperado.

Existe ainda um interessante problema de comunicação (ou de incomunicabilidade), dado que se trata de uma família portuguesa a residir em Londres. Os portugueses falam quase sempre entre si em português, mas têm de se relacionar com os ingleses. Para que este diálogo se estabeleça, não existem grandes dificuldades. Mas a filha do casal é surda, o aparelho auditivo está estragado, não há dinheiro para o reparar, ou substituir, o que levanta dificuldades de comunicação com os pais, com a escola, com os serviços sociais. É este o maior óbice para que os problemas se ultrapassem. Não por indiferença ou desinteresse dos agentes no terreno, mas possivelmente pela legislação desadequada.



Falemos, finalmente, da interpretação que é de qualidade invulgar: Lúcia Moniz é simplesmente brilhante, na forma como impõe a sua personagem. Ruben Garcia, no marido, vai muito bem, e as crianças são profundamente convincentes. Quantos aos ingleses, todos eles são impecáveis nas suas intervenções, mais ou menos curtas.

Uma belíssima estreia na longa-metragem de ficção que se saúda com entusiasmo. O cinema português precisa de sangue novo e de olhares diferentes. Com talento.






OUVE-ME

Título original: Listen

Realização: Ana Rocha De Sousa (Portugal, Inglaterra, 2020); Argumento: Paula Alvarez Vaccaro, Ana Rocha; Produção: Paula Alvarez Vaccaro, Rodrigo Areias, Aaron Brookner, Agustina Figueras, Lennard Ortmann; Música: Frederic Schindler; Fotografia (cor): Hatti Beanland; Montagem: Tomás Baltazar; Casting: Heather Basten; Design de produção: Belle Mundi; Decoração: Rose Konstam; Guarda-roupa: Belle Mundi, Filipa Fabrica; Maquilhagem: Amanda Goodfellow, Sara Menitra; Direcção de Produção: Palma Derzsi; Assistentes de realização: Gabriel Lippe, Laura Prast, Lina Remeikaite; Departamento de arte: Rebecca Clayden, Noah Demeuldre, George Graham, Stella Hadjidemetriou, Mihaela Marino, James Reading; Som: Nuno Bento, João Galvão, Pedro Góis, Pedro Marinho, Sérgio Silva, Roland Vajs; Efeitos visuais: Carlos Amaral; Companhias de produção: Bando à Parte, Pinball London; Intérpretes: Lúcia Moniz (Bela), Sophia Myles (Ann Payne), Ruben Garcia (Jota), Maisie Sly (Lu), James Felner, Kiran Sonia Sawar (Anjali), Sian Abrahams, Brian Bovell, António Capelo, Susanna Cappellaro, Kem Hassan, Geoffrey Kirkness, Jay Lycurgo, Ângela Pinto, Tara Quinn, Kiki Weeks, Lola Weeks, etc. Duração: 73 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 22 de Outubro de 2020.

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