LÚCIA MONIZ: “ATRAVÉS DA ARTE (...) CONSEGUE-SE ABANAR AS PESSOAS, FAZÊ-LAS SENTIR, FAZÊ-LAS ODIAR”



Não é literal, mas no fervilhar da conversa com Lúcia Moniz sente-se que quase deu o corpo às balas para representar Bela, uma mãe portuguesa a viver no Reino Unido a quem lhe são retirados os filhos pelos serviços sociais britânicos, de forma injusta, e que a tudo o custo, com o marido (Ruben Garcia), tenta recuperar. É o enredo dramático do filme Listen, a primeira longa metragem de Ana Rocha de Sousa, um retrato cinematográfico gritante, revoltante e intenso, no qual se conta uma história que é a de muitas famílias, a quem lhes são retirados os filhos, muitas vezes de forma injusta. Não foi ao acaso que o filme conquistou cinco prémios na 77ª edição do Festival de Cinema de Veneza, em setembro passado, entre eles o Leão do Futuro – Luigi De Laurentiis, no valor de 100 mil dólares (84,4 mil euros), o prémio especial do júri da secção Horizontes, e três distinções paralelas: Arca Cinema Giovani, Bisato d'Oro e Sorriso Diverso Veneza.Cenas do filme Listen.Foto: Alfie Samba
Entre o cinema e a televisão, Lúcia Moniz tem traçado um percurso que entrelaça filmes e séries nacionais com internacionais. Da estreia no final dos anos noventa em telenovelas e curtas metragens à atualidade, a versatilidade é um dos seus trunfos, tendo feito parte de elencos como os do fenómeno O Amor Acontece (2003), A Escritora Italiana (2007), Maternidade (2011-2013), Fatima (2020) ou Thirty Minutes (2020).

A Bela é uma mãe forte, impulsiva e sofrida. Porque aceitou este papel? O guião cativou-a de imediato?

O desafio veio da Ana, através de um telefonema, já não conversávamos há 20 anos. Contou-me que estava a preparar a sua primeira longa-metragem, que tinha um guião muito especial, mas falou-me pouco da personagem. Disse apenas que gostava que eu fizesse o papel da mãe. Eu nem ia a meio do guião, e percebi que queria fazer o papel. Fiquei extremamente contente por ser a Ana a apresentar-me um guião com aquela qualidade, com uma força incrível, e depois pela mensagem que se está aqui a transmitir. Quis fazer parte dessa mensagem. A partir da escrita é muito claro perceber o temperamento e a força desta mãe, ter o coração na boca e não pensar antes de falar - em algumas situações perde mesmo a razão pela forma como age e fala - isso está muito na escrita. O meu trabalho foi dar corpo e voz a essas palavras e a esses comportamentos que já estavam no guião.Cenas do filme Listen.Foto: Alfie Samba

Como é que construiu a personagem?

Foi muito interessante construir este personagem. Há coisas que eu faço quando pesquiso que podem parecer de louca (risos). Eu vi documentários e reportagem sobre este assunto, mas também vi vídeos da vida selvagem, sobre mães leoas a protegerem as crias do ataque das hienas, para tentar retirar a parte racional e perceber como é que o animal fisicamente se comporta. Foi interessante. Depois, fiz um trabalho mais específico com uma psicóloga, que no fim de lermos juntas o guião me disse que os comportamentos descritos eram fiéis à realidade. Trabalhámos o estado de choque, o trauma, comportamentos físicos e verbais. É uma coisa que estou a gostar muito de fazer com as minhas personagens, que é tentar entender a mente das pessoas e perceber que comportamentos podem ter. Felizmente o tema da saúde mental está a ser mais falado, é mesmo muito pertinente. Para construir uma personagem é essencial, e para esta achei ainda mais pela forma como a Ana filma. É de uma forma real, crua, tem um lado poético na composição estética e na plasticidade da forma como ela filma, e não na representação. O que aqui interessou foi contar a verdade, a verdade e a verdade.

Os atores emprestam sempre um pouco de si às personagens. Deu muito de si a esta mãe?

Eu acho que dei muito de mim, mas não sei especificar o quê. Eu sou mãe, ao ler a primeira vez o guião fiquei altamente perturbada com isto, ao perceber que há mães que passam por isto. É inconcebível alguma vez retirarem-me a minha filha dos braços. Aliás, houve uma situação, quando a minha filha era pequenina, que foi quando estava a ir para Boston com ela no canguru. Ela tem o passaporte americano e eu tenho o passaporte português. Então fomos puxadas ao lado para eu responder a perguntas, questionando-me sobre isso. No final, o agente disse-me que eu voltava para Portugal e a criança ficava. E depois disse: "estou a brincar. Feliz Natal." Este filme transportou-me para esse momento. Só o facto de ele me dizer aquilo, acho que os meus olhos reviraram. Saber que assim acontece perturba-me. Depois de filmar, senti que "só" fiz um filme sobre isto, há mães que estão mesmo a passar por isto. De alguma forma acalmava-me mas por outro lado ainda me revoltava mais e me fazia mais confusão. Cenas do filme Listen.Foto: Sebastian Leif

Esse peso da responsabilidade por estar a contar uma situação que aconteceu - sentiu-o?

Eu acho que os nervos que se sentem antes de dar a conhecer o filme às pessoas, neste caso específico, levaram-me a questionar se representei bem as famílias, e a perguntar-me: será que alguém que passou por isto vai sentir-se dignamente representado? E será que sentirá que a partir deste filme estamos a dar voz a estas pessoas? Para mim a grande responsabilidade que eu levei às costas foi querer representar tudo de forma justa para estas famílias.

Foi importante ter a energia do Ruben neste papel de pai?

Completamente. Eu adoro-o como ator, acho que é um ator incrível. Desde o início que começámos logo a ensaiar, a passar textos e a ensaiar, então criámos ali uma cumplicidade muito bonita e que eu espero que se passe pela história. Foi fundamental, nós tínhamos mesmo que contar um com o outro. Até mesmo o choque de personalidades que estas duas personagens têm - é um casal que discute muito mas que se ama muito também - era importante ver. Tínhamos que estar sempre muito unidos, caso contrário não funcionava. Cenas do filme Listen.Foto: Sebastian LeifCenas do filme Listen.Foto: Alfie Samba

Como recebeu a este reconhecimento internacional tão importante?

Nós temos sempre a expectativa de que seja reconhecido e de que as pessoas gostem, e que vá o mais longe possível mas da expectativa à concretização vai uma grande diferença. Quando percebemos que no visionamento o filme foi tão bem recebido, com um aplauso que nunca mais acabava, todos chorámos. Descomprimi muito do filme nessa noite, um ano depois da rodagem ainda não o tinha feito. Sentir esse reconhecimento de pessoas que não nos conhecem de lado nenhum, que nos sorriram e agradeceram foi das melhores coisas que podia ter acontecido.

Fica a vontade de fazer mais cinema que envolva a mensagem social?

Sem dúvida. A Arte tem esta função, como outras, mas através dela podemos fazer chegar às pessoas muita informação, muita reflexão, abanar as pessoas, fazê-las sentir, fazê-las odiar, até, o que lhes é apresentado, mas sobretudo fazê-las viver alguma coisa. Gostava que as pessoas saíssem de uma sala de cinema diferentes. E se for com assuntos pertinentes em que possam ser espalhados por o maior número de pessoas, quantas mais pessoas souberem mais refletem e agem conforme os recursos que têm. E pode ser feita a diferença. Cenas do filme Listen.

Fonte: Máxima

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