Depois de Florbela e Al Berto, um filme para Amadeo







Estamos no início do século XX. A avó de Amadeo de Souza-Cardoso, interpretada por Eunice Muñoz, benze-o com água e azeite contra o mau-olhado, para evitar que o neto tenha de lutar na Grande Guerra. Lúcia Moniz, que encarna a irmã do artista, protesta: “A avó não pode fazer isso, Deus castiga!” A cena passa-se em Manhufe, a terra natal do pintor, no concelho de Amarante, mas está a ser rodada numa quinta em Sintra; outro edifício da propriedade faz as vezes de Paris – a Câmara Municipal de Amarante, argumenta a Ukbar Filmes, não conseguiu garantir “condições mínimas” para um “projecto desta dimensão”. Entre sucessivos takes, Vicente Alves do Ó, argumentista e realizador de Amadeo, explica que uma amiga da sua mãe também benzia contra o mau-olhado e comenta com Eunice que é alentejano como ela. No fim, batem-se palmas e anuncia-se que é a última cena da veterana actriz neste terceiro biopic que Alves do Ó tem em mãos, e que chegará às salas de cinema portuguesas em 2020.



O PÚBLICO visita o plateau a 12 de Dezembro, quase no fim da penúltima semana de rodagem deste filme sobre o fulgurante artista que morreu em 1918, aos 30 anos, numa fase em que a sua carreira estava ainda em ascensão. É um denominador comum às três figuras históricas que Vicente Alves do Ó já abordou: todas morreram precocemente. Primeiro, em 2012, o realizador abalançou-se a Florbela Espanca, que desapareceu aos 36 anos (Florbela); depois, em 2017, dedicou-se a Al Berto, que morreu aos 49 (Al Berto). Não foi uma escolha consciente, garante. “Que horror, que coisa tétrica!”, responde quando questionado acerca da coincidência óbvia entre os trajectos de vida dos seus biografados. “Não estava nos meus planos fazer um pintor. Eram três poetas, até porque a poesia foi sempre muito importante na minha vida”, começa por dizer. Só que, por acaso, numa visita ao Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, viu uma exposição do artista – Amadeo de Souza-Cardoso, Porto-Lisboa, 1916-2016, reconstituição da sua primeira individual, a única que fez em vida –, começou a aprofundar a sua biografia e ficou com “uma vontade imensa de fazer um filme”. Pôs de parte os planos para trabalhar sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, já que “agora toda a gente tem feito tanta coisa sobre ela”, e lançou-se ao grande nome da pintura modernista portuguesa.



“Tem muito mais que ver com o fascínio por estas pessoas, que de alguma forma me dão coisas. É uma espécie de retribuição, para que os seus nomes se mantenham mais perto das pessoas. Acho que o cinema pode ajudar a mantê-las vivas e à sua descoberta pelas novas gerações. Morrerem novos é uma chatice”, comenta. A ideia de Amadeo, continua, era mesmo responder à pergunta: “Por que é que esta pessoa não está mais inscrita nos livros da História universal da arte?” E conta que muitas pessoas, quando lhes falou do projecto, acharam que se referia a Modigliani, que também se chamava Amedeo e se cruzou com Souza-Cardoso.


Marta Soares, especialista na obra do artista que é a consultora artística principal do filme (Helena de Freitas é a outra) e tem acompanhado de perto a rodagem, enquadra o esquecimento e a redescoberta da obra de Amadeo. Conta que, “a partir de 1912/13”, a sua obra estava num “caminho de internacionalização que apontava para um reconhecimento bem estável”, tragicamente interrompido pela morte do artista. Além disso, “a concentração do espólio na viúva teve de facto consequências sobre a visibilidade da obra, já que até aos anos 1990 esta esteve numa colecção particular”, acrescenta, referindo-se às sensivelmente 200 obras que pertencem actualmente à Gulbenkian. Lucie de Souza-Cardoso “foi muito prudente e fez bem em manter aquela obra sem a dispersar”, opção que apenas se justificaria no contexto de “um reconhecimento internacional mais estável" – que, apesar da existência de pinturas do artista no Art Institute de Chicago e no Centro Georges Pompidou de Paris, não existe. Marta Soares lembra que a viúva do pintor facultou sempre as obras para homenagens, e recorda a retrospectiva que Lucie de Souza-Cardoso organizou em 1925 em França e “as várias” exposições dos anos 1950. “É claro que essas exposições e a própria Lucie estavam conotadas com o SNI [Serviço Nacional de Informações], ou seja com o Estado Novo, e essa imagem criou alguns problemas em França no pós-guerra”, sublinha a historiadora de arte.


Eunice Muñoz, que tem um cartaz do artista em casa, lembra-se bem da redescoberta de Amadeo. “Foi um caso como o do Mário Botas, ambos faleceram muito novos”, comenta aos jornalistas, lamentando que o esquecimento aconteça “com todos os grandes": “Têm épocas em que quase desaparecem, até que há alguém que felizmente pega neles outra vez e finalmente recordam-nos.”

A idade de Amadeo

Rafael Morais tem, neste momento, a idade que Amadeo Souza-Cardoso tinha quando morreu. Aprendeu a pintar para o filme, algo que diz que irá continuar. “Penso nisso todos os dias”, responde ao PÚBLICO, ainda com manchas de tinta nas mãos, quando lhe perguntamos sobre o eczema que Amadeo tinha. É a primeira vez que o actor, que foi notado por Vicente Alves do Ó em Sangue do Meu Sangue, de João Canijo, faz uma personagem histórica e participa numa produção de época. A falta de documentação audiovisual acerca de Amadeo dá-lhe liberdade para compor a personagem, ainda que se preocupe muito com a “fisicalidade específica” da época, aspecto para o qual contou com a ajuda de Marta Soares. O papel não foi escrito a pensar no actor, como já tinha acontecido em Al Berto (mas não em Florbela, papel que desde o início estava destinado a Dalila Carmo)​. Acabou por ser coincidência que o intérprete escolhido tivesse a idade de Amadeo, explica Vicente Alves do Ó.


Ao longo de três anos, o realizador escreveu 14 versões do guião, 12 das quais foram revistas por Marta Soares. “As últimas alterações não eram significativas, deviam-se à mudança de espaço, consequência da impossibilidade de filmar em Amarante”, menciona. Foi “um exercício diferente” para a investigadora. “Aprendi que o rigor histórico é quase impossível numa ficção, tenho sempre de medir o que é mais importante passar e o que não pode faltar. Muitas das opções são da ordem do simbólico e não tanto do histórico, há coisas que não se passaram efectivamente mas deviam estar no filme”, confessa.



Vicente Alves do Ó queria perceber o mistério de Amadeo, e deslindar por que é que não se conhece mais da obra dele. “Em 30 anos também não há muita história para contar. Acima de tudo, mais do que contar a vida, escolhi três momentos-charneira que ajudam a definir este homem, ou que fizeram com que este homem se tivesse finalmente definido”, conta. Esses momentos reconduzem-nos a 1911, 1916 e 1918, não necessariamente por esta ordem. Em Março de 1911, Amadeo está em Paris, “já instalado": “Vive com Lucie, é amigo do Modigliani, já se dá com aquele núcleo da vanguarda e assume-se como pintor, mostra as suas primeiras coisas.” A acção foca “uma espécie de primeira noite do resto da vida dele como pintor”. Depois, o filme reencontra-o em 1916, já de volta a Portugal, donde não pode sair para não ser chamado a combater na Primeira Guerra Mundial. É então que monta a sua primeira exposição no Jardim Passos Manuel, no Porto, depois de cortar relações com Robert e Sónia Delaunay. Por fim, o ano terminal: 1918 corresponde ao período “em que ele adoece e morre”.


Ao contrário do que sucedia em Florbela e Al Berto, filmes que evitaram tocar a morte dos seus protagonistas, o fim de Amadeo estará em cena. “Infelizmente, a tragédia da morte dele precipitou o seu desaparecimento. A Lucie voltou para Paris com aquelas obras e viveu rodeada delas durante 70 anos, só muito tarde é que estabeleceu uma relação com a Gulbenkian”, explica o realizador. “Vai ficar muita coisa de fora? Vai. Mas contar tudo daria uma série de 20 episódios e não há dinheiro para a fazer.” Ficar-se-á, então, “com um filme de duas horas sobre estes momentos que nos aproximam do homem e do pintor”. E que “pode fazer com que as pessoas comecem à procura dele, porque há muita bibliografia, há documentários, há quadros espalhados por Lisboa”, sublinha Vicente Alves do Ó: “Este filme é só um cartão-de-visita.”

Fonte : Publico

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