DIA MUNDIAL DO TEATRO: OS ESPETÁCULOS QUE NOS MARCARAM 27/03
Esta terça-feira festeja-se o Dia Mundial do Teatro e, pelos palcos do país, são muitas as formas de assinalar esta data. No Espalha-Factos não podíamos deixar de participar na efeméride e, por isso, quatro redatoras da secção Palcos&Letras elegeram uma peça e falam-te da sua melhor experiência enquanto espetadoras da arte de bem representar.
Num dia em que se celebra esta arte milenar, numa iniciativa que incentiva a ida às salas de teatro e relembra os muitos artistas e instituições culturais que passam dificuldades, discute-se sempre o pouco apoio dado à arte e à cultura em Portugal, principalmente ao teatro. Muitos são os teatros portugueses que se viram obrigados a fechar as portas, depois de anos com salas vazias e palcos com as cortinas fechadas.
Porém, felizmente a herança nesta área é rica e quem faz teatro nunca ignora a sua importância enquanto refletor e expansor da condição humana, enquanto arte essencial na cultura do mundo. Com menos recursos, mas com encenadores e atores de talento imenso, entrámos numa fase áurea com bons momentos de teatro, desde reacrições de clássicos ou adaptações da Broadway, a produções originais. Comédias, autos, musicais e revistas, criadores arrojados, novas estruturas, afluência de públicos, vitalidade e movimento… O teatro está mais vivo do nunca!
Nas suas diferentes conceções, ele faz parte das nossas vidas. É um lugar mágico, de encontros. É um lugar onde experienciamos sentidos e onde os partilhamos. Como tal, há espetáculos que nos marcam. Uns mais que outros, mas há sempre um com certeza que nunca nos sairá da memória.
Catarina Silva, redatora de Palcos&Letras: Os Miseráveis
teatro
Foto: divulgação
Para uma inveterada fã de musicais é difícil escolher um que se considere “o melhor”, mas talvez o mais marcante tenha sido Os Miseráveis, que conta a história de Victor Hugo em formato musical.
São duas horas e meia de sofrimento e glória, ao som de alguns dos melhores temas de sempre da história do teatro musical. Vi este musical ao vivo em Londres há uns anos e ainda hoje penso em voltar, porque a experiência é única e vale a pena. Acompanhamos a viagem de Jean Valjean perseguido por Javert, dois personagens que são simultaneamente bons e maus, num retrato muito realista do ser humano, como é característico do universo literário de Victor Hugo.
A música de Claude-Michel Schönberg e o libreto de Alain Boublil enriquecem ainda mais a história, que é, sem dúvida, intemporal, e que apela à reflexão sobre as noções de justiça, exploração, dignidade e idealismo, sem esquecer a importância das relações familiares, a lealdade e o amor. O tema I dreamed a dream é o mais emblemático do espetáculo, mas todas as canções, bem como os cenários, são marcadas pelo tom monumental e épico típico do período revolucionário em que se passa a ação.
Como espetáculo musical, Os Miseráveis tem tudo: melodias memoráveis, personagens fascinantes, uma narrativa profunda de conteúdo humanista, social e político, drama e romance e, até, uns toques de comédia.
Maria Beatriz Viana, redatora de Palcos&Letras: Actores
teatro
Foto: Estelle Valente / divulgação
Naquela peça, o palco deixou de ser palco. E voltou. E deixou. Ninguém foi sempre a mesma personagem ou a mesma pessoa. O que será um palco não ser um palco enquanto é um palco?
E uma pessoa não ser e ser uma personagem e trocar, trocar, trocar? Eu penso agora o teatro como uma folha onde escrevo. Uma folha que vem em branco. E onde riscamos, experimentamos, gostamos ou não gostamos.
Foram estas coisas que senti quando me desafiaram a ir assistir a Actores, de Marco Martins, para depois escrever um artigo sobre a peça. E digo-vos, mal sai de lá senti que não seria capaz, porque, para mim, o teatro passou a ser aquilo, aquela maravilha. E quando uma peça nos toca assim, é difícil encontrar as palavras certas para a descrever – e parece que ainda agora me faltam.
Eu nunca tinha assistido a uma peça de que tivesse gostado tanto e também nunca tinha escrito sobre teatro, nem pensado tanto sobre teatro. Escrever sobre dança é uma coisa que já vem comigo há uns anos. E quando me sugeriram que fosse assistir a esta peça, eu receei não estar à altura. No entanto, sinto que não podia ter sido peça melhor, sinto que foi para mim.
Numa peça de teatro sobre teatro, buscaram-se memórias, medos e repetições, repetições, repetições. Vieram peças antigas às pessoas de hoje, vieram atores antigos àqueles ‘actores’, vieram vozes, olhares, canções e dança, dança, dança. Vieram vários atores ao mesmo tempo ao corpo daqueles ‘actores’. E chegaram sonhos. Chegaram sonhos ao público, vontade de fazer parte daquele mundo, vontade de lhe tocar, de habitar nele. De ficar nele. De ser ele.
Maria João Pica, redatora de Palcos&Letras: Quase Normal
teatro
Foto: divulgação
Os musicais criaram os tempos áureos do cinema. Contudo, são, atualmente, o parente pobre das artes teatrais em Portugal (muitas vezes, pelos recursos que necessitam) com aparições semelhantes às do cometa Halley no que toca a adaptações de espectáculos internacionais.
Next To Normal é um musical rock americano de 2008, da autoria de Brian Yorkey e Tom Kitt. A adaptação chegou a Portugal em 2016 a cargo da Artfeist, com Henrique Feist e Lúcia Moniz a liderarem o elenco que conta (sim, hoje na Sala Eça de Queiroz do Teatro da Trindade, inicialmente apresentado no Casino do Estoril) com Mariana Pacheco, Valter Mira, André Lourenço e Diogo Leite.
Dirigi-me para assistir ao espetáculo com o conhecimento de causa que me é permitido nestas circunstâncias: o do soundtrack. E sim, diz muito sobre o que vamos ver mas deixa, também, um mundo de coisas por entender.
São a negação como método de sobrevivência e as doenças mentais que residem no epicentro da história, fazendo tombar, como um dominó, tudo o que as rodeia, deixando para trás pouco mais do que confusão, debate moral e a indecisão.
Deixo aos especialistas a capacidade de avaliar melhor do que eu (embora tenha a minha quota de conhecimento de causa) se a personagem de Diana (Lúcia Moniz, a mãe) está corretamente adaptada à sua condição de bipolar. Porém, parece-me indiscutível que os efeitos provocados em torno de si são tão ou mais relevantes do que a sua representação “fidedigna”, que será, em última instância, tão pessoal na materialização como o indivíduo que dela sofre.
Por isso, recordo este espetáculo, salientando uma performance menos óbvia do que a de Lúcia Moniz (para lá de brilhante, diga-se de passagem) ou de Henrique Feist: a filha do casal, Natalie, interpretada por Mariana Pacheco.
A construção de cenário é um dos principais instrumentos desta peça: existem duas, por vezes, três ações a decorrer em simultâneo sob o total desconhecimento dos envolvidos – é na ausência dos outros, na falta de atenção, que Natalie se movimenta meticulosamente. Um retrato vívido de uma realidade geracional demasiado próxima para que se torne simplesmente confortável assistir.
Nesta sombra de emoções, Natalie é atirada para os braços de Henry (André Lourenço), um rapaz bem-intencionado que gosta de fumar substâncias além do tabaco, tão bem colocado no texto como interpretado, criando espaço bem conseguido para uma zona cinzenta de entendimento no público. O rapaz, embora queira ajudar, não consegue compreender os motivos que levam Natalie a afastá-lo.
As defesas sardónicas e emotivas de Natalie são as mesmas que a mãe sempre usou e ela precisa delas, também, por causa da mãe.
Num trabalho concertadíssimo, Mariana Pacheco espelha e duplica as ações de Lúcia Moniz, com o “tempero” de personagem doseado milimétricamente.
Quase Normal é uma lufada de ar-fresco nos palcos portugueses e um soco no estômago também: o humor e a crueza com que trata um problema delicado, obriga o espetador a não olhar para a cena e ver “os outros”, “aqueles que têm problemas” mas, por outro lado, obriga-o a olhar para si, para a sua casa, para os seus “tapetes” e para os seus “telhados”.
Tudo isto sob uma partitura contemporânea, adequada à circunstância, um texto atual e habilmente sagaz, disposto em performances extraordinárias, acima de tudo, a nível vocal.
Raquel Dias da Silva, redatora de Palcos&Letras: Je Suis Werther & Toda a Cidade Ardia
teatro Foto: Daniel Viana Martins/divulgação
A última vez que fui ao teatro foi este ano para ver, pela segunda vez, a peça Je Suis Werther, uma produção Casa Cheia com direção de Miguel Mateus. Escrita por Fernando Pinto do Amaral, fala-nos de Werther, essa personagem marcante do Romantismo europeu, à luz da atualidade e através de quatro personagens modernas – dois dos atores reflexos de um Werther que, por um lado, é fatalmente intenso, por outro, é mais tranquilo, mais observador, menos emotivo do que o primeiro.
A primeira vez que vi foi na estreia, nos Recreios da Amadora, um espaço muito maior e muito menos intimista. Da primeira vez um dos atores era o Gonçalo Botelho, que não conhecia, mas que achei absolutamente incrível a nível de expressão e força corporal. Da segunda vez, o ator foi substituído pelo próprio diretor, Miguel Mateus. Não gostei tanto, confesso, mas dou-lhe o mérito de estar a dirigir uma peça que acho que tem a capacidade de mexer com as pessoas. É um pouco histriónica, mas penso que seja esse o objetivo, o exagerar das emoções pondo a nu os comportamentos, por vezes, irracionais que temos por amor ou por necessidade de nos sentirmos amados. Por outro lado, o ator Francisco Pereira de Almeida é tanto o nosso Werther mais maduro como o crítico de cena, numa performance muito sólida e que apreciei das duas vezes. De destacar também a relação entre o Werther mais dramático (João Gaspar) e a única personagem feminina, Carlota, interpretada por Margarida Bakker, que tem duas cenas particularmente inesquecíveis: a de entrada em cena e aquela em que, de repente, tem um ataque de pânico – tem de se ver para perceber. É de referir ainda: o perfeito jogo de luzes, a dinâmica sonoplástica e as coreografias (entre Gaspar e Bakker, sobretudo).
Tenho de mencionar ainda uma outra peça, a que assisti o ano passado, mas que está muito acima de quaisquer peças que tenha visto ultimamente. Toda a Cidade Ardia, com texto e encenação de Marta Dias e baseado em poemas de Alice Vieira, esteve no Teatro Aberto para contar a história de Ana (Ana Guiomar), que quer ser jornalista contra a vontade das tias e num tempo onde só os homens eram figura de destaque, mas que também se vê a braços com as aventuras e desventuras de amar e ser amada.
Como cenário, um Portugal do século passado e as alterações económicas, culturais e políticas da altura. Infelizmente já não me lembro de todos os pormenores e não consegui ir ver uma segunda vez, mas espero que um dia volte a estar em cena, para que possa ir enfiar-me numa sala de teatro sabendo que vou estar muito quieta, muito concentrada, mas a sentir as emoções à flor da pele e preparada para secar o rosto no final, sem ninguém dar por isso.
Fonte : Espalha Factos
Num dia em que se celebra esta arte milenar, numa iniciativa que incentiva a ida às salas de teatro e relembra os muitos artistas e instituições culturais que passam dificuldades, discute-se sempre o pouco apoio dado à arte e à cultura em Portugal, principalmente ao teatro. Muitos são os teatros portugueses que se viram obrigados a fechar as portas, depois de anos com salas vazias e palcos com as cortinas fechadas.
Porém, felizmente a herança nesta área é rica e quem faz teatro nunca ignora a sua importância enquanto refletor e expansor da condição humana, enquanto arte essencial na cultura do mundo. Com menos recursos, mas com encenadores e atores de talento imenso, entrámos numa fase áurea com bons momentos de teatro, desde reacrições de clássicos ou adaptações da Broadway, a produções originais. Comédias, autos, musicais e revistas, criadores arrojados, novas estruturas, afluência de públicos, vitalidade e movimento… O teatro está mais vivo do nunca!
Nas suas diferentes conceções, ele faz parte das nossas vidas. É um lugar mágico, de encontros. É um lugar onde experienciamos sentidos e onde os partilhamos. Como tal, há espetáculos que nos marcam. Uns mais que outros, mas há sempre um com certeza que nunca nos sairá da memória.
Catarina Silva, redatora de Palcos&Letras: Os Miseráveis
teatro
Foto: divulgação
Para uma inveterada fã de musicais é difícil escolher um que se considere “o melhor”, mas talvez o mais marcante tenha sido Os Miseráveis, que conta a história de Victor Hugo em formato musical.
São duas horas e meia de sofrimento e glória, ao som de alguns dos melhores temas de sempre da história do teatro musical. Vi este musical ao vivo em Londres há uns anos e ainda hoje penso em voltar, porque a experiência é única e vale a pena. Acompanhamos a viagem de Jean Valjean perseguido por Javert, dois personagens que são simultaneamente bons e maus, num retrato muito realista do ser humano, como é característico do universo literário de Victor Hugo.
A música de Claude-Michel Schönberg e o libreto de Alain Boublil enriquecem ainda mais a história, que é, sem dúvida, intemporal, e que apela à reflexão sobre as noções de justiça, exploração, dignidade e idealismo, sem esquecer a importância das relações familiares, a lealdade e o amor. O tema I dreamed a dream é o mais emblemático do espetáculo, mas todas as canções, bem como os cenários, são marcadas pelo tom monumental e épico típico do período revolucionário em que se passa a ação.
Como espetáculo musical, Os Miseráveis tem tudo: melodias memoráveis, personagens fascinantes, uma narrativa profunda de conteúdo humanista, social e político, drama e romance e, até, uns toques de comédia.
Maria Beatriz Viana, redatora de Palcos&Letras: Actores
teatro
Foto: Estelle Valente / divulgação
Naquela peça, o palco deixou de ser palco. E voltou. E deixou. Ninguém foi sempre a mesma personagem ou a mesma pessoa. O que será um palco não ser um palco enquanto é um palco?
E uma pessoa não ser e ser uma personagem e trocar, trocar, trocar? Eu penso agora o teatro como uma folha onde escrevo. Uma folha que vem em branco. E onde riscamos, experimentamos, gostamos ou não gostamos.
Foram estas coisas que senti quando me desafiaram a ir assistir a Actores, de Marco Martins, para depois escrever um artigo sobre a peça. E digo-vos, mal sai de lá senti que não seria capaz, porque, para mim, o teatro passou a ser aquilo, aquela maravilha. E quando uma peça nos toca assim, é difícil encontrar as palavras certas para a descrever – e parece que ainda agora me faltam.
Eu nunca tinha assistido a uma peça de que tivesse gostado tanto e também nunca tinha escrito sobre teatro, nem pensado tanto sobre teatro. Escrever sobre dança é uma coisa que já vem comigo há uns anos. E quando me sugeriram que fosse assistir a esta peça, eu receei não estar à altura. No entanto, sinto que não podia ter sido peça melhor, sinto que foi para mim.
Numa peça de teatro sobre teatro, buscaram-se memórias, medos e repetições, repetições, repetições. Vieram peças antigas às pessoas de hoje, vieram atores antigos àqueles ‘actores’, vieram vozes, olhares, canções e dança, dança, dança. Vieram vários atores ao mesmo tempo ao corpo daqueles ‘actores’. E chegaram sonhos. Chegaram sonhos ao público, vontade de fazer parte daquele mundo, vontade de lhe tocar, de habitar nele. De ficar nele. De ser ele.
Maria João Pica, redatora de Palcos&Letras: Quase Normal
teatro
Foto: divulgação
Os musicais criaram os tempos áureos do cinema. Contudo, são, atualmente, o parente pobre das artes teatrais em Portugal (muitas vezes, pelos recursos que necessitam) com aparições semelhantes às do cometa Halley no que toca a adaptações de espectáculos internacionais.
Next To Normal é um musical rock americano de 2008, da autoria de Brian Yorkey e Tom Kitt. A adaptação chegou a Portugal em 2016 a cargo da Artfeist, com Henrique Feist e Lúcia Moniz a liderarem o elenco que conta (sim, hoje na Sala Eça de Queiroz do Teatro da Trindade, inicialmente apresentado no Casino do Estoril) com Mariana Pacheco, Valter Mira, André Lourenço e Diogo Leite.
Dirigi-me para assistir ao espetáculo com o conhecimento de causa que me é permitido nestas circunstâncias: o do soundtrack. E sim, diz muito sobre o que vamos ver mas deixa, também, um mundo de coisas por entender.
São a negação como método de sobrevivência e as doenças mentais que residem no epicentro da história, fazendo tombar, como um dominó, tudo o que as rodeia, deixando para trás pouco mais do que confusão, debate moral e a indecisão.
Deixo aos especialistas a capacidade de avaliar melhor do que eu (embora tenha a minha quota de conhecimento de causa) se a personagem de Diana (Lúcia Moniz, a mãe) está corretamente adaptada à sua condição de bipolar. Porém, parece-me indiscutível que os efeitos provocados em torno de si são tão ou mais relevantes do que a sua representação “fidedigna”, que será, em última instância, tão pessoal na materialização como o indivíduo que dela sofre.
Por isso, recordo este espetáculo, salientando uma performance menos óbvia do que a de Lúcia Moniz (para lá de brilhante, diga-se de passagem) ou de Henrique Feist: a filha do casal, Natalie, interpretada por Mariana Pacheco.
A construção de cenário é um dos principais instrumentos desta peça: existem duas, por vezes, três ações a decorrer em simultâneo sob o total desconhecimento dos envolvidos – é na ausência dos outros, na falta de atenção, que Natalie se movimenta meticulosamente. Um retrato vívido de uma realidade geracional demasiado próxima para que se torne simplesmente confortável assistir.
Nesta sombra de emoções, Natalie é atirada para os braços de Henry (André Lourenço), um rapaz bem-intencionado que gosta de fumar substâncias além do tabaco, tão bem colocado no texto como interpretado, criando espaço bem conseguido para uma zona cinzenta de entendimento no público. O rapaz, embora queira ajudar, não consegue compreender os motivos que levam Natalie a afastá-lo.
As defesas sardónicas e emotivas de Natalie são as mesmas que a mãe sempre usou e ela precisa delas, também, por causa da mãe.
Num trabalho concertadíssimo, Mariana Pacheco espelha e duplica as ações de Lúcia Moniz, com o “tempero” de personagem doseado milimétricamente.
Quase Normal é uma lufada de ar-fresco nos palcos portugueses e um soco no estômago também: o humor e a crueza com que trata um problema delicado, obriga o espetador a não olhar para a cena e ver “os outros”, “aqueles que têm problemas” mas, por outro lado, obriga-o a olhar para si, para a sua casa, para os seus “tapetes” e para os seus “telhados”.
Tudo isto sob uma partitura contemporânea, adequada à circunstância, um texto atual e habilmente sagaz, disposto em performances extraordinárias, acima de tudo, a nível vocal.
Raquel Dias da Silva, redatora de Palcos&Letras: Je Suis Werther & Toda a Cidade Ardia
teatro Foto: Daniel Viana Martins/divulgação
A última vez que fui ao teatro foi este ano para ver, pela segunda vez, a peça Je Suis Werther, uma produção Casa Cheia com direção de Miguel Mateus. Escrita por Fernando Pinto do Amaral, fala-nos de Werther, essa personagem marcante do Romantismo europeu, à luz da atualidade e através de quatro personagens modernas – dois dos atores reflexos de um Werther que, por um lado, é fatalmente intenso, por outro, é mais tranquilo, mais observador, menos emotivo do que o primeiro.
A primeira vez que vi foi na estreia, nos Recreios da Amadora, um espaço muito maior e muito menos intimista. Da primeira vez um dos atores era o Gonçalo Botelho, que não conhecia, mas que achei absolutamente incrível a nível de expressão e força corporal. Da segunda vez, o ator foi substituído pelo próprio diretor, Miguel Mateus. Não gostei tanto, confesso, mas dou-lhe o mérito de estar a dirigir uma peça que acho que tem a capacidade de mexer com as pessoas. É um pouco histriónica, mas penso que seja esse o objetivo, o exagerar das emoções pondo a nu os comportamentos, por vezes, irracionais que temos por amor ou por necessidade de nos sentirmos amados. Por outro lado, o ator Francisco Pereira de Almeida é tanto o nosso Werther mais maduro como o crítico de cena, numa performance muito sólida e que apreciei das duas vezes. De destacar também a relação entre o Werther mais dramático (João Gaspar) e a única personagem feminina, Carlota, interpretada por Margarida Bakker, que tem duas cenas particularmente inesquecíveis: a de entrada em cena e aquela em que, de repente, tem um ataque de pânico – tem de se ver para perceber. É de referir ainda: o perfeito jogo de luzes, a dinâmica sonoplástica e as coreografias (entre Gaspar e Bakker, sobretudo).
Tenho de mencionar ainda uma outra peça, a que assisti o ano passado, mas que está muito acima de quaisquer peças que tenha visto ultimamente. Toda a Cidade Ardia, com texto e encenação de Marta Dias e baseado em poemas de Alice Vieira, esteve no Teatro Aberto para contar a história de Ana (Ana Guiomar), que quer ser jornalista contra a vontade das tias e num tempo onde só os homens eram figura de destaque, mas que também se vê a braços com as aventuras e desventuras de amar e ser amada.
Como cenário, um Portugal do século passado e as alterações económicas, culturais e políticas da altura. Infelizmente já não me lembro de todos os pormenores e não consegui ir ver uma segunda vez, mas espero que um dia volte a estar em cena, para que possa ir enfiar-me numa sala de teatro sabendo que vou estar muito quieta, muito concentrada, mas a sentir as emoções à flor da pele e preparada para secar o rosto no final, sem ninguém dar por isso.
Fonte : Espalha Factos
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